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Migração sazonal das aves: o conflito entre jejum prolongado e intenso exercício

Difícil imaginar um sonho de liberdade que não seja ilustrado pelo voo de uma ave. Existe um componente de fascinação no voo destes seres emplumados que sempre despertou a atenção dos naturalistas, assim como de observadores e poetas. Neruda, Baudelaire, Coleridge, Castro Alves e tantos outros já se renderam aos encantos dos Albatrozes; nosso doce poeta Manoel de Barros escreveu versos com juras de amor e admiração pelos alados.

O encanto pelas aves pode tornar-se ainda maior quando pensamos em seres como o trinta-réis-ártico (Sterna paradisaea), uma verdadeira recordista quando o assunto é distância de migração. Esta ave, com cerca de 35 cm de comprimento, nidifica no Ártico e inverna em águas Antárticas, retornando na primavera, uma viagem anual de cerca de 30.000 km. Ocasionalmente podemos encontrá-la aqui no Brasil em seus sítios de parada durante o percurso de migração. Veja aqui alguns registros da espécie: http://www.wikiaves.com/trinta-reis-artico. Outros recordistas são o fuselo (Limosa lapponica), ave capaz de percorrer cerca de 11.000 km sem nenhuma parada no solo para buscar alimento, e também o andorinhão-real (Tachymarpts melba), que pode permanecer em voo por cerca de seis meses, alternando entre voos mais ou menos custosos.

Sterna hirundinacea. Fonte: wikipedia.

Limosa lapponica. Fonte: wikipedia.

O que faz uma ave investir tantos recursos energéticos para sair em busca de territórios tão distantes? Sabemos que a Terra desloca-se em torno do Sol em um ciclo de aproximadamente 365 dias, com seu eixo inclinado em um ângulo de 27.5º. Este movimento, conhecido como translação, provoca mudanças sazonais na quantidade de energia recebida por um determinado ponto da Terra. Assim, ao longo do ano, a duração da fase clara dos ciclos diários (fotoperíodo) varia bastante, especialmente nas maiores latitudes, chegando ao extremo nas regiões polares, onde podemos observar 24 horas de luz no verão e 24 horas de escuro no inverno. Dias mais longos resultam em mais fotossíntese e maior abundância de alimento no verão, e o contrário no inverno. Este ciclo anual, que conhecemos como estações do ano, resulta da relação espacial da Terra com o Sol e da disposição de terras e águas no planeta. Desta forma, diversas paisagens apresentam variações anuais na quantidade de luz, calor, chuva e umidade, o que faz com que muitas delas sejam habitáveis apenas sazonalmente.

As aves e diversos outros organismos desenvolveram alguns mecanismos para lidar com estas variações ambientais recorrentes, como, por exemplo, a capacidade que muitos répteis e mamíferos têm de hibernar em fases menos favoráveis. Entre as aves a hibernação é muito incomum e conhecida apenas em um curiango da América do Norte, o Phalaenoptilus nutalli.

Porém, as aves lidam de forma diferente com as flutuações ambientais, muitas delas migram para locais onde podem encontrar maior disponibilidade de alimentos e abrigos. Não é difícil imaginar aves migradoras se pensarmos na mobilidade das aves e sua habilidade para o voo. Contudo, durante a migração, as aves enfrentam um grande desafio fisiológico, ou seja, elas experimentam uma fase de intenso exercício físico associado ao jejum prolongado. Alguns mecanismos adaptativos são importantes para que as aves enfrentem este conflito fisiológico. Durante a etapa pré-migratória, as aves precisam armazenar combustível que seja apropriado para abastecer o voo de longa distância, fenômeno conhecido como engorda migratória. Nesta fase, as aves selecionam alimentos que possam oferecer quantidades consideráveis de gorduras (lipídios), que serão armazenadas em seus tecidos para uso posterior. Lipídios são combustíveis ideais por serem compostos orgânicos hidrofóbicos, que podem ser armazenados sem a necessidade de água, algo importante para seres que não devem ficar muito pesados. Além disso, quando oxidados para a produção energética, os lipídios providenciam cerca de duas vezes mais energia por unidade de massa quando comparado aos carboidratos e proteínas.

Para armazenar gorduras suficientes para a migração, as aves apresentam alguns ajustes nas estratégias nutricionais durante a fase pré-migratória. Apresentam o que chamamos de hiperfagia, ingestão excessiva de alimentos. Estudos realizados com uma ave passeriforme conhecida como felosa-das-figueiras (Sylvia borin) demonstram que a hiperfagia não é a única responsável pelo aumento de massa das aves em fase que antecipa a migração, mas também há maior eficiência na utilização do alimento, com processos digestivos mais satisfatórios e maior assimilação de gordura na dieta (ver Bairlen 85). Há também aumento na atividade de algumas enzimas envolvidas com a lipogênese, mecanismo que possibilita a síntese de ácidos graxos que serão armazenados em depósitos subcutâneos e viscerais. Com estes ajustes, as aves ganham massa corporal durante a fase pré-migratória. Algumas espécies como o fuselo (Limosa lapponica), um dos recordistas citados aqui, ainda hipertrofiam os órgãos relacionados com exercício, como os músculos peitorais e o coração, e atrofiam órgãos relacionados com a nutrição, como o estômago, intestino e fígado, antes de partir para longos voos de migração. As espécies que atrofiam os órgãos digestivos geralmente são aquelas que realizarão longos voos sem oportunidades de paradas para buscar alimentos.

Sylvia borin. Fonte: wikipedia.


Além da hiperfagia, aumento na eficiência da utilização de alimentos e hiperlipogênese, as aves também apresentam mudanças na composição de sua dieta em fases pré-migratórias, optando por alimentos que apresentem tipos específicos de ácidos graxos, especialmente os insaturados, que são preferencialmente utilizados durante o metabolismo. Alguns passeriformes interrompem a dieta quase totalmente insetívora por uma com quantidades consideráveis de frutos. Frutos apresentam grandes concentrações de carboidratos, e o excesso de carboidratos ingeridos podem ser convertidos em triglicerídios pelo fígado dos organismos. O grau de frugívoria e a seletividade por determinadas espécies de frutos variam ao longo do ano independente da abundância de frutos, conforme foi constatado em estudos de laboratório.

Mudanças endógenas no estado fisiológico da ave podem fazer com que elas selecionem alimentos com características nutricionais distintas em diferentes fases do ano. Portanto, as técnicas de forrageamento e seletividade de habitat são fortemente influenciadas pela demanda nutricional da ave e da qualidade dos itens alimentares que serão encontrados. Com estoques de combustível (lipídios) as aves podem então iniciar o processo de migração. Os ácidos graxos são então liberados do tecido adiposo e transportados pelo sistema circulatório para abastecer as células musculares durante o voo. Nas células musculares, os ácidos graxos serão metabolizados rapidamente para suprir a alta demanda energética do voo. A gordura adiposa geralmente é esgotada durante a atividade de migração e a capacidade de reabastecê-la é um dos gargalos e fonte de mortalidade para muitas espécies. Maçaricos que não atingem o peso mínimo muitas vezes não retornam para suas áreas de nidificação.

Aves não migratórias também utilizam ácidos graxos como combustível primário para o voo, porém, oxidam ácidos graxos intramusculares, o que é suficiente para a manutenção do voo. Mas o exercício de alta intensidade e o tempo de resistência de voo necessário para a migração exige ácidos graxos liberados pelas reservas adiposas que foram acumuladas durante a fase pré-migratória. Proteínas são também armazenadas, mas como estruturas corporais. São catabolizadas durante o voo em processos metabólicos e mobilizadas para providenciar água durante as condições secas do voo. Sua utilização, especialmente dos músculos e órgãos digestivos, resulta em perda de capacidade funcional e estes órgãos chegam reduzidos nos sítios de parada que as aves encontram ao longo de sua migração.

Quando chegam aos sítios de parada precisam reconstruir seus músculos de voo e órgãos digestivos, além de acumularem reservas adiposas novamente para poder seguir viagem. As longas distâncias de voo experimentadas pelas aves migratórias exigem um conjunto de adaptações que fazem com que estes seres sejam experts em comer demais, selecionar comida específica, armazenar, transportar e utilizar de forma eficiente suas reservas energéticas. As aves migratórias são campeãs no bom e velho engorda-emagrece, algo tão familiar para nós, não?


Para saber mais:


Bairlein, F. 1985. Efficiency of food utilisation during fat deposition in the long-distance migratory garden warbler (Sylvia borin). Oecologia 68:118-125.


Liechti, F. at al. 2013. First evidence of a 200-day non-stop flight in a bird. Nature Communications DOI: 10.1038/ncomms3554


McWillians, S.R. et al. 2004. Flying, fasting, and feeding in birds during migration: a nutritionaland physiological ecology perspective. Journal of Avian Biology 35: 377-393.


Piersma, T. 1998. Phenotypic flexibility during migration: optimization of organ size contingent on the risks and rewards of fueling and flight? Journal of Avian Biology 29: 511-520.


Wingfield, J.C. et. al. 2004. Arctic spring: the arrival biology of migrant birds. Acta Zoologica Sinica 50(06): 948-960.








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